- 06/10/2021
- Posted by: Fausto Sette Câmara
- Category: Direito Empresarial

A Câmara dos Deputados, na figura do deputado federal Eduardo Bismarck (PDT/CE), apresentou o Projeto de Lei nº 21/2020, por intermédio do qual aventa a criação de um marco legal para o desenvolvimento e uso da Inteligência Artificial no Brasil.
O objetivo central é estabelecer princípios, direitos, deveres e instrumentos de governança para o uso da Inteligência Artificial no Brasil, bem como definir diretivas para a atuação do Poder Público, da iniciativa privada e de pessoas físicas.
Três artigos, dentro de um arcabouço de 16 dispositivos legais, se destacam a apresentar fundamentos, objetivos e princípios. Entre os fundamentos listados para o uso da Inteligência Artificial no Brasil estão o desenvolvimento tecnológico, a livre iniciativa, o respeito aos direitos humanos e valores democráticos, a igualdade, o respeito aos direitos trabalhistas e à proteção de dados. Já no trecho da lei relativo aos objetivos, temos o “uso da inteligência artificial para buscar resultados benéficos para as pessoas e o planeta, com o fim de aumentar as capacidades humanas, reduzir as desigualdades sociais e promover o desenvolvimento sustentável”. O escrito também aborda a própria definição para a IA, um dos tópicos mais controversos do campo e é relevante tema de pesquisa objeto de trabalho dos maiores especialistas da matéria. O legislador optou por reproduzi-la como “sistema baseado em processo computacional que pode, para um determinado conjunto de objetivos definidos pelo homem, fazer previsões e recomendações ou tomar decisões que influenciam ambientes reais ou virtuais”.
A iniciativa é nobre e certamente representará grande evolução nas mais diversas áreas profissionais, mas, empiricamente, exigirá do governo investimentos permanentes. Isso porque deverá ser fomentando o desenvolvimento de uma IA atenta às suas implicações legais, sociais e éticas, sendo que a sua constante e inevitável integração com o mundo digital deve ocorra de maneira segura.
A propósito, o The Inclusive Internet Index 2021[1] mostra que o Brasil ocupa o 36º lugar – entre 120 países pesquisados – em termos de inclusão digital, caindo para a 48ª posição em termos de infraestrutura e despencando para o 69º posto quando estudado especificamente o quesito de alfabetização digital, ficando atrás de países como Argentina (18ª), Peru (34º), Paraguai (51º) e Vietnã (52º).
Fica claro, destarte, a urgência em acelerar esse processo de inclusão digital, sendo o principal alvo a população menos favorecida, submetendo-a a um processo de aculturamento e integração no uso da IA; inclusive quanto aos seus direitos e deveres. De igual forma, deve-se acompanhar as pesquisas e o desenvolvimento dos sistemas de IA, de preferência com a criação de ambientes digitais controlados nos quais tais sistemas possam ser experimentados e aprovados previamente à sua disponibilização para o mercado.
De igual maneira, diante do rápido avanço da IA, também será necessário lidar com as implicações laborais que, certamente, resultarão em transformações significativas no mercado de trabalho. O Poder Público, com o objetivo, num primeiro momento, de fazer uma transição equilibrada e progressiva na implementação da IA nos diversos setores profissionais e, num segundo momento, buscar a qualificação dos colaboradores, agregando competências inerentes à interação com os sistemas de IA, deve, de forma conjunta, atuar com todos os stakeholders na execução deste grande projeto.
Esse “empoderamento” da mão-de-obra produtiva possui grande influência no sistema educacional. Nesse espeque, será necessário a inclusão de matérias específicas no currículo do ensino fundamental e médio, passando pela revisão e atualização das disciplinas dos diversos cursos do ensino superior, até a implantação de programas de reciclagem e formação de pessoas já inseridas no mercado de trabalho, com a finalidade de garantir condições à essas pessoas de assumir novas oportunidades.
Além dessas questões, o PL 21/2020 apresenta caráter genérico no tratamento da matéria e em alguns aspectos há falta de embasamento técnico na proposição dos artigos; o que demandaria mais estudo e pesquisa sobre a matéria para aprimorar os dispositivos do projeto e entender os efeitos de forma prática. Segundo Sergio Novaes, professor titular da Instituto de Física Teórica da Unesp e diretor do Advanced Institute for Artificial Intelligence (AI2), em São Paulo, “Essa definição de IA não faz sentido.”; “(…) o texto é oco, um conjunto de obviedades. Quem é que pode ser contra a sustentabilidade ou a redução das desigualdades?”; “Mas não acrescenta nada. Não vai ajudar a lidar com temas como preservação da privacidade, os aspectos éticos, as necessidades de regulação.”; “E nós precisamos de regulamentação, não acho que se deva deixar a área seguir por si mesma.”.
Outra forte crítica se refere a ausência de participação dos principais especialistas da área no país. O PL foi proposto em fevereiro de 2020 e no mesmo mês chegou à comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara, local que permaneceu até março deste ano. A seguir, foi examinado durante cinco sessões da Comissão, período determinado para a apresentação de emendas, sendo que nenhuma foi apresentada. O projeto, então, seguiu para o plenário virtual, e pode vir a ser votado a qualquer momento. Assim, no sentido da Nota Técnica sobre o PL 21/2020, elaborada pela Fundação Getúlio Vargas[2], a votação do referido projeto não deveria se dar de forma excessivamente apressada sem a participação da sociedade e de especialista no processo legislativo. A inclusão do projeto em regime de urgência de votação seria incompatível com o debate público multidisciplinar e multisetorial indispensável no momento e pelos efeitos da lei, sobretudo porque ainda não há consenso mínimo e tampouco amadurecimento suficiente do debate sobre o tema legislado, decorrente de uma evolução tecnológica que ocorre em ritmo acelerado. É necessário pesquisa.
Há diversos órgãos que elaboraram notas críticas sobre o projeto no sentido de ocasionar o debate mais aprofundado das questões antes da sanção do mesmo.
Por outro lado, é necessário mencionar que alguns estudiosos da área apontam pontos favoráveis no PL 21/2020. Entre eles está a abordagem de propor princípios gerais, que depois podem ser complementados por lei específicas. Também recebe elogios o dispositivo que estabelece o direito dos usuários dos sistemas de IA de serem informados sob potenciais efeitos adversos que podem ocorrer. O mesmo estabelece, ainda, a necessidade de que o usuário seja informado de quem é a instituição responsável pelo sistema de IA que ela está utilizando.
Porém, afirme-se novamente, o texto não explica como, na prática, tais responsabilizações e demais temas seriam estabelecidos, o que demanda uma análise mais aprofundada da matéria, considerando setores específicos que podem utilizar a IA. Além disso é necessário aguardar a confecção de outras lei ou regulamentos específicos que materializam os institutos tratados no então projeto de lei.
Não há dúvida de que a criação de um marco legal para a Inteligência Artificial no Brasil é essencial, mas é apenas o primeiro passo rumo a uma transição sustentável para uma convivência saudável, equilibrada e não discriminatória entre seres humanos e máquinas. A efetividade desse arcabouço legal dependerá da implantação de políticas públicas e de governança que assegurem o cumprimento do principal objetivo das aplicações de IA: criar valor para a sociedade.
[1] Disponível em: https://theinclusiveinternet.eiu.com/
[2] Disponível em: https://ciapj.fgv.br/sites/ciapj.fgv.br/files/ciapj_fgv_notatecnica_ia.pdf
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